terça-feira, 16 de novembro de 2010

( RE) VISÃO DA CONSTITUIÇÃO

A PROPÓSITO DA REVISÃO DA CONSTITUIÇÃO

Por: Mário Magno Chemane
magnocencio@gmail.com
05-11-2010


«A teoria da separação de poderes tinha, no pensamento liberal, subjacente o pressuposto de que existiriam titulares diferentes dos poderes, com diferentes legitimidades e em principio com posições politicas diferenciadas: o Rei e o governo, as duas câmaras do parlamento e os tribunais. Não considerou o aparecimento do novo príncipe – O Partido – que pode estar simultaneamente por detrás do Presidente da Republica, do parlamento e do governo» (Luís de Sá:1999;105).
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Tem estado a correr rumores de que uma das grandes alterações que irá ser proposta pela bancada parlamentar da Frelimo, no âmbito da revisão constitucional que se avizinha, será a mudança na forma designação do Presidente da Republica (PR), passando este a ser eleito pela Assembleia da Republica (AR) e com um mandato estendido dos actuais 5 para 7 anos. Com poderes consideravelmente reduzidos, o PR manter-se-á Chefe de Estado, deixando entretanto de chefiar o Governo a favor da figura de um Primeiro Ministro com mais poderes executivos (Canal de Moçambique 22-10-2010). A ser verdade, significa que iremos assistir a uma mudança a nível do Sistema de Governo de um Presidencialismo reforçado, como é o actual, para um Sistema de Governo de tipo Parlamentarista. A grande questão da presente análise é precisamente perceber o espírito e alcance desta alteração e fundamentalmente se irá resolver as distorções que o actual sistema trás á democracia no país.

Já agora, que distorções são essas que o Presidencialismo moçambicano impõe á lógica da democracia? A Constituição da República de Moçambique (CRM) exalta no seu artigo 134. o principio de separação e interdependência dos poderes do estado. Mas a mesma CRM no seu artigo 188, confere ao Presidente da República poderes de dissolução sobre Assembleia da Republica, que como se sabe é um órgão de soberania com legitimidade própria, proveniente do sufrágio universal. Mais ainda, o PR (CRM:artigo159; alínea g) tem poderes de nomeação sobre as mais altas figuras da Magistratura Judicial (O Presidente do Tribunal Supremo, Administrativo, do Conselho Constitucional, dois membros do Conselho Superior da Magistratura Judicial).

Segundo Cistac (2008;19) , todo este figurino constitucional perturba o princípio da separação e equilíbrio de poderes em claro proveito do PR e em prejuízo dos restantes órgãos de soberania. A Assembleia da Republica vê a sua independência e espaço de manobra, para a realização das sua tarefas de legislação e fiscalização, reduzidos face á possibilidade de dissolução pelo PR. A independência do poder judicial fica também ferida pela influência do PR, pois o facto de as mais altas figuras serem por ele nomeadas, torna-as de alguma forma, embora não necessariamente, reféns do PR. Ademais o PR sempre procurará nomear para aqueles cargos, figuras politicamente convenientes. E é o que temos estado a assistir a nível do Conselho Constitucional, Tribunal Administrativo e Supremo. Isto acaba, embora de forma muito subtil, corroendo a imagem do PR pois ele pode ser percebido com alguma desconfiança por alguma parcela da sociedade que não pertence ao partido no poder.

Nestes termos o que poderá acontecer se a alteração prevista se efectivar? Deixando de fora eventuais agendas ocultas por parte das forças políticas, deve- se olhar de forma positiva para a mudança. Ela responde as inquietações da sociedade sobre a concentração de poderes em volta da figura do PR. Mas, mais do que isso, o PR ganha bastante em termos de legitimidade, pois na qualidade de chefe de Estado, longe da chefia do Governo, ele distancia-se e coloca-se acima, pelo menos formalmente, das lutas interpartidárias com a oposição, inevitáveis para quem dirige o governo e é responsável pela direcção política do país. Longe das lutas políticas, ele (o PR) coloca-se numa posição bastante privilegiada para intervir (em momentos de crises e impasses, por exemplo) sempre que julgar conveniente, como entidade suprema e personificadora da unidade nacional.

Será também salutar, se esta redução de poderes contemplar a retirada do poder de dissolução da Assembleia, pois irá significar o alcance de uma situação de um relativo equilíbrio do legislativo em relação ao executivo, assegurando uma base para alguma independência deste órgão e efectivo sistema de check and balances entre ambos.
Será também bem vindo se o Governo for formado a partir da Assembleia da República, pois aquele órgão será politicamente responsável perante o legislativo e isso poderá aumentar o potencial para uma governação inclusiva e responsável por parte do executivo, pois existirá a possibilidade, mesmo que virtual, de queda do governo em caso de votação de uma moção de censura. É verdade que o actual PR, vem implementando uma atitude de responsabilização no seio do conselho de ministros, buscando, certamente, transmitir à sociedade uma mensagem de que se os ministros perdem a sua confiança, não há condições de continuidade. Mas acredito que em nada se compara à fiscalização permanente que a A.R exerceria sobre o Executivo. É mais efectivo e talvez mais objectivo, afinal são muitas mentes envolvidas nas decisoes a serem tomadas..

Pessoalmente, não sou muito a favor do esbatimento total da figura do PR do cenário político, tornando-o numa figura meramente formal, nos termos em que eventualmente se vá propor. Mas também não sou a favor da manutenção dos actuais poderes do PR. Penso que o país ainda precisa de um PR presente, não propriamente a dirigir o Governo e muito menos a nomear os magistrados do judicial, mas a intervir, sempre que for preciso, e sempre que lhe convier, na resolução de impasses, crises entre os outros órgãos de soberania, num papel verdadeiramente arbitral, como último garante da unidade e estabilidade nacionais. Isto passaria necessariamente por ele continuar a ser eleito por sufrágio universal para assegurar legitimidade própria, mas sem exercer nenhuns poderes executivos. Por isso, a haver de facto alterações a nível do sistema de governo sugeria uma transição gradual do actual Presidencialismo para um Sistema Misto(Semi-presidencialista ou Semi-parlamentarista).

Sobre se estas mudanças poderão ou não resolver os problemas acima levantados, depende de um factor que muitas vezes tem sido negligenciado por muitos, mas que tem uma influência decisiva sobre o funcionamento do sistema de governo. Falo do sistema de partidos. De acordo com De Sá(1999:44) , designa o conjunto de partidos, as relações que estabelecem entre eles e com o Poder, sua força relativa, sua organização, dimensões e funções que desempenham num determinado sistema politico. A nossa realidade manda dizer que vivemos num sistema multipartidário de partido dominante, onde a Frelimo vem, de forma cada vez mais vigorosa, consolidando a sua hegemonia no sistema político. Este domínio faz com que Frelimo tenha um amplo espaço de manobra para influenciar o funcionamento do sistema de governo. É que, do lado dos bastidores do poder, por detrás do executivo, do legislativo e até do judicial, está o partido Frelimo a quem estes órgãos devem alguma obediência, informal mas efectiva. Como se disse acima, a influência do PR faz sentir no Governo, como é obvio, na Assembleia da República e até nos Tribunais, que em princípio se diz serem apolíticos. Mas esta influência é desenhada implementada a partir do partido, que aliás tem no PR, o seu líder.

Portanto, mesmo que se mude a sede (formal ou aparente) do poder do PR para a Assembleia da Republica, como se está a propor, continuaremos, muito provavelmente a ver reproduzidas as mesmas distorções, mas agora tendo como centro, não a figura do PR mas sim Assembleia da República. Teremos um PR legítimo, como foi atrás referido, mas continuaremos a ter, também, um partido (a sede real do poder) forte e presente que irá determinar/influenciar a conduta da Assembleia da República (cuja maioria, absoluta ou não, provavelmente continuará a pertencer a Frelimo por muito mais tempo), do Primeiro Ministro e Governo. Continuará certamente a orientar ou, nessa altura, a Assembleia da Republica sobre as figuras mais politicamente convenientes para ocupar os mais altos cargos da Magistratura Judicial. Assim para que alterações constitucionais desta natureza surtam os efeitos desejados, em termos de um verdadeiro principio de separação e independência de poderes, será necessária uma mudança a nível das relações de força no sistema partidário, com efeitos na composição da Assembleia da Republica, por via da emergência ou consolidação de uma ou mais forcas políticas politicamente viáveis e capazes de ombrear com o actual partido no poder.

Licenciado em Relações Internacionais e Diplomacia pelo ISRI. Docente Universitário e
Analista Político.
2 CRM – Constituição da República de Moçambique (2004).
3 Cistac, Gilles (2008); Os Três Poderes do Estado; in CIP(2008); Governação e Integridade em
Moçambique – Problemas Práticos e Desafios Reais; Maputo.
4 DE SÁ, Luís Manuel da Silva. Introdução à Ciência Política, Universidade Aberta, 1999, Lisboa-
Portugal.